Opinião
Reflorestamento Energético?
Estudo feito por Embrapa, Unicamp e Agroicone demonstra que, no período de 2000 a 2020, as áreas cultivadas com cana no Brasil não só não emitiram carbono, como removeram 196 MtCO2 através de melhorias no uso da terra e da implantação da colheita mecanizada, substituindo as queimadas
Inventei esse nome outro dia. A ideia não é necessariamente original, apesar de ainda ser comum explicar para algum acionista/investidor que cana-de-açúcar e desmatamento são dois assuntos com correlação negativa nos últimos 20 anos. Não só temos como comprovar isso, como seria possível pensar em iniciativas de recuperação de áreas degradadas plantando cana-de-açúcar, com benefícios de captura líquida de carbono, desenvolvimento socioeconômico e produção de bioenergia sem competir com alimentos pelo uso da terra.
No estudo recente publicado na revista LAND (plataforma global especializada em assuntos sobre o uso da terra), Embrapa, Unicamp e Agroicone demonstram que, no período de 2000 a 2020, as áreas cultivadas com cana no Brasil não só não emitiram carbono, como removeram 196 MtCO2 através de melhorias no uso da terra e da implantação da colheita mecanizada, substituindo as queimadas. Isso é o equivalente a plantar 1,4 bilhões de árvores, o que ocuparia uma área superior a 1 milhão de campos de futebol ou 80x a cidade de Paris coberta por vegetação florestal[1]! Nos mesmos 20 anos, 98,4% do avanço da cana não teve qualquer impacto em vegetação natural. Ou seja, praticamente ¼ das áreas cultivadas já eram cana nos anos 2000 e assim elas permaneceram. Já os outros 6,1 milhões de hectares vieram de conversão de áreas que anteriormente eram pastagens ou áreas já utilizadas para agricultura.
Em outras palavras, não só a cultura da cana no Brasil não tem impacto em vegetação nativa via mudança direta do solo (conhecido em inglês como Land Use Change – LUC), como tem impacto positivo na captura de carbono. Além disso, o estudo identificou que a área total de florestas nessas propriedades agrícolas aumentou, aderindo a um código florestal rigoroso com metas de restauro de áreas de preservação. Isso é recuperação de florestas somada à descarbonização e ao desenvolvimento local.
Todas essas informações precisam ser entendidas e reconhecidas mundo afora, especialmente por mercados exigentes, como EUA ou Europa, e certificações internacionais, como a Bonsucro ou ISCC[2]. Esses atores carecem de dados confiáveis e atuais para estimar as emissões de ciclo de vida de cada produto. Por isso acabam usando abordagens conservadoras e genéricas que penalizam os produtos em suas pegadas de carbono. O mundo precisa formar conhecimento sobre quais culturas são mais eficazes em promover a economia verde sem pressionar os serviços ecossistêmicos, no caso a cana-de-açúcar brasileira e todos os seus derivados.
Enquanto isso, as projeções sobre demanda por biocombustíveis globalmente (especialmente nos setores de difícil eletrificação, como aviação e transporte marítimo ou químicos) só aumentam. Compilando projeções de consultorias renomadas e empresas, estima-se que a demanda deva atingir certa de 240 milhões de toneladas em 2030 e 390 milhões em 2050. Se pensarmos por exemplo em atender algo como 25% dos mandatos globais para SAF (sustainable aviation fuel) em 2030 com tecnologia de produção a partir do etanol (Alcohol-to-Jet ou AtJ), a demanda adicional pelo combustível seria de cerca de 9 bilhões de litros, 1/3 da produção brasileira. Já em 2050, estima-se que aproximadamente 50% da demanda por biocombustíveis seja SAF. Os mesmos 25% de AtJ gerariam uma demanda adicional de 100 bilhões de litros. Em contrapartida, as mesmas estimativas apontam para disponibilidade de outras possíveis matérias-primas que não afetem produção de alimentos (resíduos ou waste) em algo como 30 milhões de toneladas. Não é à toa que a Agência Internacional de Energia (International Energy Agency - IEA, em inglês) demonstra preocupação com disponibilidade de matéria prima para produção de biocombustíveis.
Voltemos ao Brasil, que tem hoje cerca de 150 milhões de hectares de área utilizada para pastagem[3] dos quais quase 1/3 estão degradadas[4] e poderiam ser recuperadas para agricultura. Se essa recuperação fosse feita através do plantio de cana, explorando seu potencial de forma otimizada, com produção de etanol de primeira e segunda gerações e biogás, o Brasil poderia aumentar sua produção de etanol em cerca de 200 bilhões de litros, quase 7x a produção atual e mais de 2x a produção do Brasil e dos EUA somadas, de muito longe os dois maiores produtores da commodity. Mais um detalhe: apenas o etanol de cana-de-açúcar se qualifica hoje como matéria prima para a produção de SAF, de acordo com as regras estabelecidas pelo governo americano para concessão de incentivos a descarbonização (IRA)[5].
Sigo firme na minha jornada de desmistificar as falsas crenças relacionadas aos biocombustíveis e ao seu papel na jornada global de descarbonização. Se a conscientização pelo lado da demanda parece ter avançado bem, temos muito trabalho ainda na educação e no entendimento sobre as diferenças relevantes entre os chamados crop-based products (feitos a partir de culturas agrícolas) no que se refere a qualquer possível relação com desmatamento, potencial de restauração do solo especialmente em áreas degradadas, e captura de carbono. E, no caso específico na nossa cana, potencial de expandir substancialmente o portfólio de produtos renováveis (E2G, biogás/biometano, SAF, biometanol, amônia verde, químicos etc.) aumentando a produtividade agrícola e explorando todo o potencial energético dessa planta, sem retirar seu protagonismo na produção de açúcar e sem plantar um hectare adicional de cana fora das áreas degradadas.
Reflorestamento energético? Melhor: energético e alimentar! No cenário de escassez de recursos e necessidade de descarbonização, me parecia difícil acreditar que alguma solução poderia promover, simultaneamente, produção de energia limpa, alimento e restauro de ecossistemas. Parecia!
[1] Baseado nos fatores de conversão 0,14 tCO2/árvore e 1.667 árvores/ha (fonte: SOS Mata Atlântica). Referência das áreas equivalentes: Campo de futebol oficial de 100x70m e Cidade de Paris com 105 km².
[2] Bonsucro e ISCC são exemplos de padrões independentes que certificam, por meio de critérios globalmente reconhecidos, que certo produto foi produzido respeitando princípios de sustentabilidade
[3] MapBiomas – Mapa de Cobertura e Uso da Terra do Brasil, 2021
[4] MapBiomas – Mapa de Cobertura e Uso da Terra do Brasil, 2021
[5] https://valor.globo.com/agronegocios/noticia/2023/02/08/bioquerosene-de-aviacao-nova-fronteira-para-o-etanol-de-cana.ghtml
Paula Kovarsky, engenheira mecânica e de produção, com MBA em finanças corporativas, tem mais de 20 anos de experiência no setor de energia e é VP na Raízen. Escreve na Brasil Energia a cada três meses.