Opinião

A urgência da descarbonização e suas incoerências

“O homem é uma espécie insana. Adora um Deus invisível e destrói uma Natureza visível. Sem perceber que a Natureza que ele destrói é o Deus que ele adora”

Por Paula Kovarsky

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Escutei outro dia essa frase de Hubert Reeves, astrofísico franco-canadense defensor do meio ambiente, na voz do Paul Polman, que dispensa apresentações. Guardei nos meus notes como introdução perfeita para um novo artigo, dando sequência ao meu projeto pessoal de ajudar a destravar o mercado de créditos de carbono.

Ainda que a questão das mudanças climáticas seja fundamentalmente global, já que não adianta um país descarbonizar sozinho se outros não fizerem sua parte, os interesses individuais de cada um seguem atrapalhando a evolução de um mercado global de créditos de carbono, a forma mais eficiente e barata de promover descarbonização. Os sinais da urgência estão claros, escancarados nos fenômenos climáticos visíveis nas nossas vidas quase todos os dias. E mesmo assim cada um segue firme e focado em defender seus próprios interesses.

Para minha grata surpresa, o meu “Teorema das invejas positivas”, tema de um artigo anterior - onde China e Brasil assinariam um acordo relevante de compra e venda de créditos de carbono e atrairiam outros países para a iniciativa - ganhou tração no contexto das discussões que precedem a COP 30 no final desse ano. Premissa simples: uma negociação bilateral seria bem mais fácil do que envolver quase duas centenas de países, especialmente na atual conjuntura política mundial. Daí a resolver o desafio de harmonização das métricas e regulações são outros quinhentos, remunerando de forma justa cada contribuição e garantindo o fluxo financeiro necessário. Mas seguimos trabalhando.

Enquanto isso, avançam as discussões sobre biocombustíveis, especialmente para os chamados “hard to abate sectors” (setores onde é mais difícil e caro reduzir emissões). Dois bons exemplos: aviação, regulado pelo Corsia (Carbon Offsetting and Reduction Scheme for International Aviation, desenvolvido pela Icao – International Civil Aviation Organization), que estabelece um sistema global para reduzir e compensar as emissões de CO2 da aviação internacional a partir de 2021, e navegação, regulado pelo IMO (International Marine Association), mais focado na redução de emissões diretas através de eficiência, mudanças tecnológicas e uso de combustíveis sustentáveis.  

Transporte aéreo e marítimo são dois setores globais por natureza, portanto precisam de soluções globais. Se alguém acha que a discussão e o reconhecimento das vantagens competitivas específicas de cada projeto de captura de carbono ou matéria prima envolvida na produção dos biocombustíveis são muito mais objetivos nesse caso, promovendo o reconhecimento financeiro correto para os atributos sustentáveis, ledo engano.

Historicamente, a Europa tentou separar a discussão entre combustíveis de primeira ou segunda geração, para qualquer tipo de mistura, de etanol na gasolina por exemplo. De maneira simplificada, primeira geração são os energy crops, ou os biocombustíveis produzidos diretamente a partir de plantas (etanol de cana ou de milho, diesel de óleos vegetais), dividindo uso da terra com a produção de alimentos. Segunda geração são biocombustíveis produzidos a partir de resíduos (gordura animal, óleo usado de cozinha, etanol celulósico, biometano, etc). Apesar de reduzirem emissões em escalas muito parecidas, a descarbonização da primeira geração vale sensivelmente menos em comparação com a da segunda geração. O sistema exige uma certificação de práticas sustentáveis de produção, como condições de trabalho, área consolidada de plantio que não tenha gerado desmatamento a partir de 2008.  

A California, mercado mais avançado nos Estados Unidos, atribui uma intensidade de carbono, baseada em critérios estabelecidos pelo Carb (California Air Resources Board) com base no LCFS (Low Fuel Carbon Standards), que leva em consideração uma serie de critérios como origem da matéria prima, práticas agrícolas de produção e uso da terra (Iluc), e emissões no transporte.

O etanol de cana brasileiro tem um Iluc calculado pela metodologia do Carb de ~12gCO2/MJ e o etanol de milho americano entre 30 e 40t, dependendo da região de origem. No entanto, tudo caminha para uma mudança na regra, eliminando a pontuação, dada a dificuldade verdadeira de medição do Iluc. A proposta é adotar um critério qualitativo parecido com o europeu de qualificar ou não, usando o ano de 2008 como base para a questão de desmatamento. Para o etanol brasileiro, seja ele de cana (que tem a maior vantagem no ILUC quantitativo) ou de milho safrinha (que pleiteia um reconhecimento de baixo Iluc e cuja expansão é mais recente), existe claramente uma perda de competitividade. Além disso, acaba de passar no Congresso americano uma lei que restringe os gigantescos incentivos do IRA (Inflation Reduction Act) a projetos que usem matéria prima produzida nos EUA, Canadá ou Mexico.

No caso do Corsia a discussão principal gira em torno da metodologia de cálculo das emissões. Somente créditos de carbono gerados a partir de 2016 em diante são aceitos e devem ser provenientes de programas aprovados pela Icao, tais como: ACR (American Carbon Registry); ART (Architecture for REDD+ Transactions); Gold Standard e Verra (VCS); entre outros, ancoradas em trabalhos científicos de entidades isentas e renomadas, reconhecidas internacionalmente, com a ressalva específica de que créditos associados a biocombustíveis ou com risco de dupla contagem nacional, podem ser excluídos.

Mais uma vez corremos o risco de ver prevalecer a lei do mais forte, pelo dinheiro investido diretamente na atividade de advocacy, e principalmente pelo investimento e embasamento acadêmico, que suporta a grande maioria das teses de cálculo das emissões de carbono a partir de parâmetros de clima temperado do Norte Global. A Embrapa, responsável pela calculadora de emissões do Renovabio, fez um trabalho de alta qualidade levando em consideração parâmetros específicos do Brasil, mas não tem o reconhecimento da metodologia ou dos parâmetros utilizados em outros mercados.

A renomada produção acadêmica americana seria provavelmente capaz de provar cientificamente com profundidade qualquer das suas teses ou critérios de quantificação. Esse é um risco importante para o Brasil e para todo o chamado Sul Global cuja produção acadêmica não tem a mesma tradição e reconhecimento. Se o Governo americano seguir cortando orçamento de pesquisa daquele país talvez tenhamos mais força – que fique claro que esta razão é ruim! Mas não é o caso da Europa.

No caso do IMO, a conversa parece estar avançando na direção correta. Além de ser agnóstica sobre a tecnologia, a entidade pretende avaliar cada uma das alternativas de descarbonização do transporte marítimo pelo conceito de Carbon Intensity, ou seja, pela quantidade de carbono emitida por unidade de energia (gCO2/MJ por exemplo).

O conceito de Carbon Intensity como métrica de redução está finalmente sendo aceito pelas empresas de energia, de materiais e outras. Parece óbvio, mas há pouco mais de 3 anos precisei de muita persistência para convencer os então acionistas da empresa em que trabalhava de que medir projetos de produção adicional de biocombustíveis por Escopo 1 e 2 não fazia o menor sentido, uma vez que aumentar a produção elevaria as emissões absolutas. O certo seria calcular o carbono evitado ao substituir os similares fosseis. A dificuldade de mensurar o carbono evitado com precisão nos levou enfim a uma métrica de Carbon Intensity, mas a conversa não foi fácil. E o desafio de quantificar corretamente os atributos e as vantagens competitivas dos energy crops tropicais permanece.

Por fim, mas não menos importante, começa a surgir uma discussão entre países dotados de vantagens competitivas em redução de emissões sobre vender seus créditos de carbono barato para países mais ricos e desenvolvidos, e ficar com o ônus de, no futuro, pagar caro pela própria descarbonização.

O ponto é genuíno e tem seu mérito. Mas honestamente, o fluxo de capital potencial pela venda desses créditos ou atração gigantesca de investimentos para produção de biocombustíveis, industrialização a partir de energia barata e renovável tem tanto valor no tempo quanto a possibilidade de acelerar de forma eficiente e mais econômica a descarbonização global. Fora que, se projetos dessa natureza escalam de verdade, muito provavelmente os custos futuros de descarbonização decrescerão também.

Fica então registrado o desabafo! Esse assunto é tão óbvio, tão urgente, tão necessário quanto uma solução perfeita e global é improvável nesse momento. Precisamos avançar com projetos concretos mesmo que imperfeitos, reconhecer boas práticas de acordos do mercado voluntário ou aperfeiçoar esses acordos até se tornarem bilaterais e em algum momento globais, para citar um exemplo.

Parar de travar nos desafios e nas diferenças e pragmaticamente estabelecer um mínimo denominador comum de carbon accounting para avançar, aprendendo com os percalços do caminho e aprimorando o processo. Mais um punhado de recomendações ou de coalizões, todas com objetivos nobres, mas perdidas na necessidade de protagonismo, nos ajudarão muito pouco nessa corrida contra o tempo.

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