Opinião

O futebol e a transição energética

O Brasil começa o jogo do net zero com um time campeão, com matrizes energética e elétrica mais limpas do mundo. Mas temos urgência, e embora seja importante ter objetivos de longo prazo, como o hidrogênio, temos nossos produtos agrícolas e nossos biocombustíveis de hoje e do futuro próximo para monetizar agora

Por Paula Kovarsky

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A COP28 terminou com a seguinte frase: “...transitioning away from fossil fuels in energy systems in a just, orderly and equilable manner, accelerating action on this critical decade, so as to achieve net zero by 2050 in keeping with science”.

Muito se debateu sobre o significado dessas palavras. Proponho uma abordagem simples e possivelmente otimista sobre o significado delas e, principalmente, das oportunidades que não podemos desperdiçar, ainda mais jogando em casa - estamos sediando o G20 (Grupo das 20 maiores economias do mundo) e o B20 (representação do setor privado no G20) esse ano e a COP30 acontece no Brasil, no ano que vem.

Vamos por partes sobre a frase. “...transitioning away from fossil fuels in energy systems”. Pela primeira vez se fala abertamente sobre o começo do fim da era do petróleo. Não há dúvida de que o mundo precisa urgentemente reduzir o consumo de combustíveis fósseis. Mas, infelizmente, não é possível fazer isso da noite para o dia. Eletrificar é uma ótima ideia, mas não dá para fazer de uma vez e tem setores da economia onde isso ainda não é possível. Fora custo. A palavra certa é transição mesmo.

“... in an orderly and equitable manner”. A transição precisa acontecer de forma ordenada e racional, considerando as prioridades, desafios, diferenças e vantagens competitivas de cada região do planeta.

“… accelerating action on this critical decade, so as to achieve net zero by 2050”. Temos urgência, não adianta ficar falando de 2050 e não priorizar aquilo que pode ser feito agora. Se não atingirmos as metas de 2030 dificilmente chegaremos lá em 2050, fora o risco de ser tarde demais. 2023 foi o ano mais quente da nossa história!

“...in keeping with science”, precisamos medir as emissões de forma correta, baseada em ciência, através de um sistema reconhecido internacionalmente, mas capaz de refletir as particularidades de cada região, especialmente as do chamado Global South.

Bola no nosso campo. O Brasil começa o jogo com um time campeão, com uma das matrizes energéticas e elétricas mais limpas do mundo, dono da maior floresta tropical do planeta, tendo agricultura de primeiro mundo, privilegiada pelo clima e disponibilidade de água, numa democracia estabelecida e a distância segura, pelo menos geograficamente, de qualquer conflito internacional. Mas será que isso é suficiente para ganhar o jogo?

A questão do desmatamento é óbvia. Desmatamento ilegal, como o próprio nome diz, não deveria nem entrar na discussão. É igual doping, tira o jogador do campeonato. Isso posto, pleitear financiamento internacional para restauro, conservação e reflorestamento passa a ser absolutamente legítimo, estabelecidas as condições legais e regulatórias para que projetos saiam do papel e sejam reconhecidos internacionalmente, em bases científicas - regras claras para o jogo. O Brasil é o celeiro do mundo, maior produtor de soja, segundo maior de milho, maior em açúcar, agropecuária, o Brasil que dá certo e exporta.

Falemos então de energia, encarando de frente a realidade de que será uma transição gradual, mas temos urgência. O Brasil não tem um problema na sua matriz energética. O Brasil é solução. Energia elétrica renovável, abundante e competitiva. Poderemos sim produzir hidrogênio verde em bases competitivas em algum momento da próxima década. Temos uma frota de carros leves flex, capaz de usar etanol, combustível competitivo com sua alternativa fóssil e tão ou mais eficaz que o carro elétrico no quesito emissões. Produzimos biodiesel, podemos produzir diesel verde coprocessado em nossas refinarias. Fazemos bioplásticos de etanol. Para que ficar tentando copiar soluções importadas de países que não tem alternativa? Como transformar esse potencial, essa vantagem competitiva em riqueza de verdade, convertida em desenvolvimento real e sustentável para o nosso país? Encontrando quem realmente precisa e pode pagar pelos nossos produtos verdes.

Precisamos sim retomar um processo robusto de reindustrialização do país para exportar produtos com menor pegada de carbono e monetizar de verdade esse atributo, mas com objetividade e pragmatismo. Podemos exportar biocombustíveis que já produzimos, e outros produtos renováveis produzidos a partir do etanol como SAF ou Biobunker. Podemos produzir amônia verde a partir do biometano, num país que apesar de celeiro do mundo importa mais de 90% dos fertilizantes. Já estamos exportando com prêmio significativo o etanol de segunda geração (uma tecnologia de ponta que só o Brasil conseguiu fazer funcionar em escala industrial na Raízen). Quais as alternativas disponíveis, com prontidão e escala para colocar a bola para rolar imediatamente, além de serem todos produtos “drop in”, que podem ser misturados imediatamente aos fósseis, usando infraestrutura e maquinário existentes? Olha o perigo de entrar em campo de sapato alto.

Participei pela primeira vez do B20 há dois anos na Indonésia. No início das discussões, não havia sequer menção ao papel dos biocombustíveis no capítulo de transição energética e conseguimos colocar o tema no documento final de recomendações políticas. No ano seguinte, na Índia, ganhamos um aliado importante, um país produtor de cana-de-açúcar como nós. Ainda assim muito pouco do que saiu das recomendações do B20 chegou de verdade ao G20.

Este ano, o grupo de Transição Energética e Clima, liderado pela Raízen, larga de um estudo produzido pela Mckinsey que indica que o consumo de biocombustíveis deverá quadruplicar já em 2030. A Agência Internacional de Energias Renováveis (IRENA) prevê que a demanda por biocombustíveis pelo menos triplique até 2030.

Mas, para que o Brasil possa, legitimamente, se beneficiar desse momento único, precisamos de foco, organização, pragmatismo e ciência. Ter objetivos de longo prazo como hidrogênio é muito importante, mas temos nossos produtos agrícolas e nossos biocombustíveis de hoje e do futuro próximo para monetizar agora, contribuir sim para o desenvolvimento do Brasil e ajudar o mundo, que tem poucas alternativas dada a urgência. Sentar objetivamente na mesa de negociação de alto nível sobre agronegócio sustentável, uso da terra, biocombustíveis, créditos de carbono, certificação e métricas, para que os atributos de redução de pegada de carbono e não competição com alimentos sejam cientificamente reconhecidos pelos nossos clientes do Norte Global, que precisam priorizar tecnologias eficientes e não tomar decisões políticas em prol de interesses específicos. Viabilizar o acesso essencial ao pool de capital global disponível e ávido por bons projetos renováveis. Pelo menos no B20 o grupo de Transição Energética e o de Finanças e Infraestrutura, liderado pela EB-Capital, estão trabalhando de forma muito coordenada. E então nosso gol será justamente sair com poucas e boas recomendações que sejam realmente ouvidas e incorporadas pelo G-20, sob nossa liderança.

É hora de sair da arquibancada e entrar em campo, escalando nossos melhores jogadores, com tática e disciplina, sem estrelismos e jogando em equipe. A bola está com a gente e o campo é nosso. Mas não podemos vacilar de jeito nenhum. Como se diz no futebol, quem não faz, leva!

 

 

Paula Kovarsky, engenheira mecânica e de produção, com MBA em finanças corporativas, tem mais de 20 anos de experiência no setor de energia e é VP na Raízen. Escreve na Brasil Energia a cada três meses.

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