Abertura do mercado de baixa tensão

Opinião

Abertura do mercado de baixa tensão

Tenho dúvidas se permitir que consumidores de baixa tensão escolham de quem comprar energia estimulará a competição, como ocorre na telefonia móvel. Dou mais importância ao risco de aceleração da “espiral da morte” do que à “liberdade de escolha”

Por Jerson Kelman

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Nesse tema, me sinto como um  soldado desengonçado que marcha em ritmo desencontrado do batalhão e acha que todos os demais estão errados. Digo isso porque as vantagens da abertura têm sido quase consensuais entre os agentes do setor elétrico. Eu, ao contrário, não consigo perceber de que maneira a abertura contribuirá para a solução dos principais problemas do setor. Pior: temo que vá agravá-los.

A vantagem mais comumente apregoada da abertura é a “liberdade de escolha”. Isto é, permitir que consumidores de baixa tensão escolham de quem comprar energia, o que supostamente estimulará a competição, como ocorre com as empresas de telefonia móvel.

Menos apregoado, mas possivelmente presente nas mentes dos que deploram a explosão de subsídios, é um raciocínio ao estilo Stanislaw Ponte Preta: “restaure-se a moralidade ou locupletemo-nos todos”. Ou seja, na impossibilidade de acabar com o “cercadinho vip” que protege os consumidores do Ambiente de Contratação Livre (ACL) dos custos sistêmicos arcados pelos consumidores do Ambiente de Contratação Regulada (ACR), que se permita a livre migração do ACR para o ACL.

Se todos migrassem, os custos sistêmicos teriam que ser melhor alocados e o problema estaria resolvido. Porém, é razoável supor que isso não ocorrerá. Primeiro, porque a experiência internacional mostra que muitos consumidores cativos preferem se manter como estão para evitar uma desnecessária relação com o comercializador varejista. Segundo, porque os consumidores com crédito duvidoso terão dificuldade de achar quem lhes queira vender energia.

Como agravante, é provável que os comercializadores varejistas passem a atuar como substitutos tributários, em lugar das distribuidoras. Nessa condição, terão que recolher o imposto estadual (atualmente ICMS) correspondente à venda de energia para seus clientes no faturamento e não no recebimento. Portanto, tudo indica que os comercializadores varejistas serão duramente penalizados pela inadimplência, como hoje as distribuidoras já o são.

A distribuidora de eletricidade continuará responsável por comprar energia para abastecimento dos não migrantes e para cobrir o furto. Nesse sentido nada muda. Porém, é razoável supor que permanecerão cativos os consumidores que em média tenham menor poder aquisitivo. Até porque os mais abastados serão assediados pelos comercializadores varejistas.

Se assim for, as dificuldades que as distribuidoras já enfrentam para controlar a inadimplência e o furto se intensificarão, acelerando a “espiral da morte”. Terão que ser de alguma forma compensadas para evitar o colapso. Quem pagará?

Os consumidores cativos que migrarem para o ambiente livre estarão sujeitos a eventuais descumprimentos contratuais por parte dos comercializadores varejistas. Para evitar que fiquem sem acesso à energia, o Projeto de Conversão da Medida  Provisória 1304/2025 (PCMP) prevê a criação do Supridor de Última Instância – SUI, que será responsável por garantir o fornecimento de energia aos consumidores do mercado livre em situações emergenciais, como o default do comercializador varejista.

O SUI será autorizado e fiscalizado pela Aneel, que também definirá os critérios para atuação, prazos e custos envolvidos. O PCMP estabelece que o Governo Federal (e não a Aneel) deve regulamentar quem será o responsável pela prestação do serviço. Está apenas decidido que o  custo da operação do SUI será compartilhado entre os agentes do mercado livre. Ainda bem!

Há ainda que se definir quem ficará responsável pela medição do consumo e como o comercializador varejista irá remunerar a distribuidora pelos serviços de emissão do TOI (Termo de Ocorrência e Inspeção) e de corte e religa dos consumidores livres que se tornem inadimplentes. Já as desconexões da rede por furto continuarão a ser custeadas pela distribuidora, como ocorre atualmente.

Compartilho essas minhas inquietudes porque dou mais importância ao risco de aceleração da “espiral da morte” do que à “liberdade de escolha”. Mas torço para que algum leitor piedoso me convença que estou errado e que sim, a abertura do mercado de baixa tensão será providência segura e relevante para recolocar o setor elétrico nos trilhos. Nessa hipótese, acertarei  o passo com o batalhão.

 

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