
Opinião
Certificado de Garantia de Origem de Biometano: um fim em si mesmo?
Não é razoável ter um olhar restrito ao endereçar uma política pública transversal como é a do biometano, sob o risco de impactar outras políticas ora em análise e em implementação, sobretudo ao setor de gás natural.

Coautora: Letycia Pedroza*
A energia tem ocupado um papel central nas discussões globais relativas às mudanças climáticas. No Brasil não poderia ser diferente, em que pese grande parte do volume de nossas emissões estar associado ao uso da terra, principalmente ao desmatamento para o plantio e pecuária e queimadas, incluindo pastagens.
O Observatório do Clima apresentou no final do ano passado alguns dados interessantes: “os setores de energia e processos industriais tiveram um tímido aumento de emissões porque houve redução nas atividades da indústria e da geração de eletricidade, apesar do recorde do transporte em toda a série histórica”. E este foi o principal objetivo do Programa Combustível do Futuro: incentivar o uso de combustíveis sustentáveis para garantir a descarbonização no setor de transporte nacional.
Acontece que, dentre as políticas voltadas à transição energética no transporte, foi incluído, no regramento legal (Lei nº 14.993/2024 – Combustível do Futuro), um capítulo para promover também a descarbonização do setor de gás natural por meio de incentivos ao biometano.
Entretanto, neste, o foco da referida lei não foi direcionado ao setor de transportes, e sim ao uso do biometano no mercado de gás, cujo principal impactado será a indústria brasileira, maior consumidora deste energético, já que o gás tem, atualmente, um uso pouco expressivo no transporte.
Em termos ambientais, diferentemente do setor de transporte, o industrial não apresenta o mesmo papel nas emissões de Gases de Efeito Estufa (GEEs). Segundo o Balanço Energético Nacional de 2024, divulgado pela EPE, enquanto o setor de transportes emitiu cerca de 217 Mt CO2 eq, a indústria emitiu 73,9 Mt CO2 eq, ou seja, três vezes menos.
Então, o foco da política voltada ao biometano está em determinar metas de redução de emissões de GEEs a serem cumpridas por produtores e importadores de gás natural por meio da aquisição do gás renovável. Segundo a Lei, o cumprimento da meta poderá ser comprovado pela compra da molécula de biometano ou do CGOB (Certificado de Garantia de Origem de Biometano), o qual atesta a característica renovável do energético.
Em outras palavras, o CGOB é o atributo ambiental que diferencia o biometano do gás natural fóssil, já que os dois energéticos são, basicamente, compostos por moléculas de metano.
No macro, o objetivo é simples. Na prática, entretanto, há pontos sensíveis que podem comprometer a eficácia da política pública que se espera conduzir, principalmente a partir das diretrizes que se pretende estabelecer no processo de regulamentação da lei colocado em discussão.
Sob essa ótica, a primeira questão, diz respeito à credibilidade do CGOB, pelo risco da dupla contagem desse certificado de origem com outros instrumentos ambientais. Ao contrário do comando legal, a proposta regulamentar não impediria que o mesmo volume de biometano pudesse ser utilizado para gerar CGOB e para, voluntariamente, gerar o CBIO (Crédito de Descarbonização destinado à comprovação das emissões evitadas pelo setor de combustíveis líquidos, no âmbito da Política Nacional de Biocombustíveis – RenovaBio).
Além disso, a minuta de Decreto publicizada tem a intenção de permitir a emissão do certificado de origem para a parcela da produção destinada ao autoconsumo, o que contraria a própria Lei do Combustível do Futuro, que determina expressamente que o CGOB deve ser emitido apenas para o biometano produzido e comercializado.
O biometano autoconsumido, por definição, não é objeto de comercialização. Se essa previsão for mantida, ela abrirá margem para interpretações equivocadas, dificultando a rastreabilidade da geração desse certificado, uma vez que seria complexo ou, até mesmo inviável, fiscalizar a real destinação do volume produzido, ou seja, segregar a parcela que foi destinada ao autoconsumo daquela destinada à comercialização.
Outro ponto difuso na proposta de Decreto foi tornar facultativa a inclusão das informações sobre a intensidade de carbono do biometano no CGOB. Essa faculdade tende a limitar a sua aceitação pelo mercado, tanto nacional quanto internacional, e seu uso em inventários corporativos de emissões, comprometendo a eficácia do programa, que pretende, justamente, separar o atributo energético do ambiental e permitir maior liberdade às soluções de descarbonização.
Frisa-se que, para além do risco de torná-lo incompatível com outros mecanismos de descarbonização, a exemplo do mercado de carbono em regulamentação no Brasil, reduzindo a sua atratividade e liquidez, impõe-se o risco de o CGOB representar apenas uma obrigação ao produtor e ao importador de gás natural que, na ausência dos incentivos corretos para capturar o atributo ambiental ou comercializá-lo com agentes interessados nessa captura, tenderá a repassar o custo da aquisição deste certificado na comercialização da molécula de gás natural. Para mais, a minuta de Decreto ainda eleva esse risco ao dispor que o produtor e o importador de gás natural devem aposentar o CGOB – algo que, nos termos da Lei, é facultado aos próprios agentes.
Ainda seguindo esse mesmo raciocínio, há um risco adicional sobre o mercado voluntário pela imposição de aquisição exclusiva do CGOB para atestar a compra de biometano, enquanto há outros certificados de origem em uso e já aceitos. Essa exigência pode desestimular a participação de empresas interessadas em ações ambientais voluntárias, reduzindo a abrangência da descarbonização. No limite, tornará o biometano uma alternativa pouco atrativa à descarbonização pela dificuldade de comprovação de seu uso por meio do CGOB.
Por fim, há muitas assimetrias em relação à capacidade produtiva do biometano para assegurar o cumprimento da meta volumétrica que será determinada pelo CNPE. A proposta regulamentar sugere a adoção de dados preliminares de planejamentos ainda não consolidados, a exemplo do Plano Integrado Nacional das Infraestruturas de Gás Natural e Biometano, em elaboração pela EPE, o qual ainda não é capaz de atestar a real disponibilidade de biometano ao mercado.
Por outro lado, ainda não está claro se fontes de dados verificáveis, como a relação de plantas operantes e em processo de instalação fornecidas pela ANP, que contém informações acerca da capacidade produtiva e previsão de operação de novas usinas, serão utilizadas pelo CNPE.
Adicionalmente, também não está claro como será mapeada a disponibilidade de biometano para o mercado regulado. É importante ressaltar a diferença entre a capacidade produtiva e a disponibilidade do insumo.
A molécula de biometano disponível é aquela que é produzida e que não está lastreada em contratos de comercialização. Ou seja, não se poderia considerar como disponível aquele biometano que já vem sendo comercializado. Afinal sempre houve demanda para o energético. O que pode não existir é oferta suficiente para cumprir a meta já em 2026, dúvida que a Petrobras já apontou após sua chamada pública de propostas de biometano finalizada há poucos meses.
Muitas incertezas ainda rondam a política de incentivos ao biometano que se pretende endereçar por meio da Lei nº 14.993/2024 (e proposta de decreto regulamentador) e para garantir a sua eficácia será preciso analisar minuciosamente os impactos das medidas que se pretende estabelecer.
É inegável o papel que o biometano representa para a transição energética brasileira e para alinhar a estratégia nacional de descarbonização às melhores práticas globais de sustentabilidade. Entretanto, ajustes serão necessários para que, com credibilidade e racionalidade econômica, possamos chegar ao objetivo almejado.
Não é razoável ter um olhar restrito ao endereçar uma política pública transversal como é a do biometano, sob o risco de impactar outras políticas ora em análise e em implementação, sobretudo ao setor de gás natural, energético estratégico não só para a indústria, mas também para o setor elétrico, cuja estrutura de custos não possui mais qualquer margem para absorver ou subsidiar custos regulatórios de medidas que possam tornar-se ineficazes.
*Letycia Pedroza é analista de Energia na Abrace – Associação Brasileira dos Consumidores de Energia. Engenheira de Energia formada pela UnB, atua na regulação do setor de gás natural, com foco na distribuição de gás canalizado e no mercado de biometano.