
Opinião
Lições sobre a produção de biogás a partir de RSU
Estudos detectaram compostos tóxicos que escapam dos aterros, não se degradam no meio ambiente nem no organismo humano e podem ocasionar sérios problemas de saúde. Os aterros são nossa melhor alternativa para os RSU?

Quando falamos de inovação tecnológica logo pensamos na criação de novos processos ou produtos que utilizam tecnologias avançadas para otimizar a eficiência, produtividade e rentabilidade do sistema. Em se tratando do biogás a partir de resíduos sólidos urbanos (RSU) no Brasil, um dos melhores exemplos é a metanização seca (Tecnologia TMethar), que conta com tecnologia 100% nacional e se diferencia dos convencionais aterros sanitários.
No entanto, ao contrário dos aterros que recebem “de tudo”, a metanização seca só funciona se a fração orgânica do RSU for previamente segregada, o que demanda uma parceria colaborativa com governo e sociedade.
Essa é uma tarefa bastante desafiadora considerando o contexto brasileiro e assim continuamos a ver nas notícias que a produção de biogás no Brasil vem crescendo significativamente nos últimos anos, sendo os aterros os grandes responsáveis por isso. Mas será que este sistema é realmente sustentável?
Em um estudo da Universidade da Flórida publicado em 2024 na Environmental Science & Technology Letters, foram detectados compostos tóxicos que escapam dos aterros, conhecidos como PFAS (Per and polyfluoroalkyl substances) ou, popularmente, “produtos químicos eternos”, pois não se degradam naturalmente no meio ambiente nem no organismo humano, podendo ocasionar sérios problemas de saúde.
E os EUA tem muito mais tempo de experiência nesta tecnologia que o Brasil, o que já acende uma luz amarela para refletirmos se realmente os aterros são nossa melhor alternativa para os RSU.
Por que não olhar para os nossos vizinhos do Sul Global? Neste lado do globo, as condições socioeconômicas distintas permitem soluções diferenciadas. É aí que entram as inovações tecnológicas de baixo custo.
O caso da Flexi Biogas no Quênia pode ser um bom exemplo: esta startup vem democratizando o acesso ao biogás por meio de sistemas acessíveis e de fácil instalação, voltados para comunidades rurais e periféricas. Neste caso, o biogás vem sendo utilizado como gás de cozinha para substituir a queima de lenha para produção de carvão vegetal, que tem agravado o desmatamento e os problemas de saúde da população queniana.
O sistema foi desenvolvido de forma que os próprios moradores possam operar o biodigestor sem o devido conhecimento do processo, mas sabendo que apenas a fração orgânica deve ser utilizada. Segundo a startup, a inovação permitiu mais simplicidade e redução de custos comparados aos biodigestores domésticos tradicionais, como os modelos chinês e indiano. Exemplos como este, que contam com apoio de agências da ONU, também são encontrados na Índia e no próprio Brasil.
Considerando que quase 30% da população brasileira é de baixa renda, segundo dados do IBGE de 2023, os biodigestores domésticos ou comunitários de baixo custo também tem seu espaço, com valores que podem variar entre R$ 1.500 a R$ 20.000.
Na sua grande maioria, os sistemas de baixo custo existentes são uma adaptação do modelo indiano (biodigestor enterrado) e utilizam resíduos agrícolas e estrume, tendo problemas de operação especialmente no manejo de entrada e saída dos substratos. Por outro lado, esse fato pode ser visto como uma oportunidade para inovação.
Mas e o RSU? Exemplos como do Instituto Ecoengenho no interior do Alagoas, fundado em 2001, são interessantes: o projeto Ilha do Ferro em especial permitia utilização de restos de alimentos além de resíduos agropecuários para abastecer uma padaria local; no entanto não há informações atualizadas sobre o status atual do projeto.
O projeto GEF Brasil, implementado pela Unido e liderado pelo MCTI é outra iniciativa que vem contribuindo com avaliações de rotas tecnológicas de tratamento de RSU em diferentes locais, por meio de uma Ferramenta de Gestão Regionalizada de RSU. No entanto, ainda não resultou em implementação prática de unidades demonstração, como já ocorreu para resíduos agropecuários.
Essas soluções descentralizadas do Sul Global possibilitam que pequenas comunidades, que são numericamente representativas no Brasil, tenham uma maior autonomia energética ao mesmo tempo que promovem uma gestão sustentável do RSU.
A vertente educacional aliada à comunicação sobre os benefícios ambientais e econômicos dessas ações, potencializa a mudança de comportamento e abastece a cadeia de valor do biogás. Tais fatos evidenciam como a inovação disruptiva – que pode redefinir a forma de consumo de produtos e serviços com potencial de transformar indústrias inteiras – com tecnologias apropriadas às condições locais, aliada a estratégias de inclusão social, podem gerar resultados concretos.
Para o Brasil, entender e inovar em tecnologias de baixo custo possibilita uma gestão de resíduos mais eficiente e sustentável, com menor dependência de tecnologias importadas de países desenvolvidos, cuja complexidade e custos normalmente não se alinham ao contexto econômico nacional.
Pensar globalmente, agir localmente. Esta é a receita do sucesso.