Porque o adiamento da CP 08/2025 é de interesse do país

Opinião

Porque o adiamento da CP 08/2025 é de interesse do país

Ante tantas incertezas e lacunas, a ANP deve considerar que a pressa pode legitimar distorções históricas, prejudicar a competitividade do mercado e comprometer o desenvolvimento sustentável do setor de gás natural no Brasil. Os efeitos, quando finalmente definidos, podem retroagir a 1º de janeiro de 2026

Por Bruno Armbrust

Compartilhe Facebook Instagram Twitter Linkedin Whatsapp

A Constituição Federal de 1988 estabeleceu dentre os princípios da administração pública, notadamente, a legalidade, a impessoalidade, a publicidade e a eficiência. Esses princípios não podem ser esquecidos pela ANP. Isso é evidenciado no congestionamento da agenda regulatória e no lançamento simultâneo de distintas e importantes consultas públicas (CP) fundamentais para o setor do gás, como a CP 01/2025, a CP 03/2025, a CP 05/2025 e a CP 08/2025 (processo de revisão quinquenal das tarifas), o que torna esses processos ineficientes, pouco transparentes e de difícil participação e contribuição do mercado.

No caso específico da CP 08/2025, as propostas tarifárias apresentadas pelas transportadoras deveriam ter sido analisadas pela agência reguladora, previamente e amplamente.

Além disso, considerando a complexidade envolvida na definição da Base Regulatória de Ativos (BRA), seria recomendável que a agência contratasse uma auditoria externa independente, uma vez que não é aceitável que a ANP adote, passivamente, estudos e análises produzidas pelas partes interessadas, o que é o caso da análise comparativa entre as metodologias de Custo Histórico Corrigido pela Inflação - CHCI e Custo de Reposição Novo - CRN, realizadas pela NTS, indicando, sem maiores esclarecimentos, que a metodologia CHCI seria a mais benéfica ao mercado.

Há ainda um volume significativo de documentos tarjados e informações fundamentais que foram divulgadas apenas após a abertura da consulta, comprometendo o direito à informação e à transparência do processo.

Outro agravante é que a CP 08/2025 ocorre simultaneamente a CP 05/2025, que trata justamente dos critérios para o cálculo das tarifas e procedimentos de aprovação. Isso prejudica o acompanhamento técnico e a capacidade de participação qualificada por parte da sociedade civil e dos agentes do setor.

Vale destacar que a CP 01/2025, que tem impacto direto sobre as demais consultas públicas, ainda não foi concluída. A ANP, portanto, promove uma avalanche de consultas públicas com temas estruturantes, sem a devida coordenação ou planejamento estratégico, abrindo espaço para decisões com baixo escrutínio técnico.

As boas práticas internacionais devem ser utilizadas como referência

Um exemplo que poderia ser seguido pela ANP é o da Espanha. Lá, o processo de revisão tarifária para o ciclo 2021–2026 foi conduzido com antecedência e planejamento:

  • A metodologia foi aprovada em abril de 2020, com 18 meses de antecedência;
  • Foram realizadas duas consultas públicas, em julho e dezembro de 2019;
  • O regulador local, a Comissão Nacional de Mercado e Competência - CNMC, publicou relatórios das contribuições em até 30 dias;
  • A versão final foi aprovada pelo Conselho de Estado e pela plenária da CNMC, nove meses antes do início do novo ciclo tarifário.

Para o ciclo regulatório 2027-2032, a CNMC já realizou uma primeira consulta pública e as conclusões devem sair com pelo menos um ano de antecedência. Esse modelo, sim, permite uma real participação dos agentes e evidencia o que seria uma boa prática de governança regulatória, que contrasta fortemente com o cenário regulatório em tela.

A solução prudente nesse momento

Considerando ainda que os transportadores, em atenção ao decreto nº 10.712/2021, revisado  pelo decreto nº 12.153/2024, submeteram à aprovação da ANP suas propostas de base regulatória de ativos, a princípio em 02/2025, e a ANP não apresentou, até o momento, qualquer análise, o congestionamento de consultas públicas, que se instaurou meses depois, somado ao extenso volume de informações a serem analisadas pelo mercado, não traz a segurança necessária para a correta avaliação pelos agentes do mercado.

Neste contexto, o adiamento da CP 08/2025 e o necessário ordenamento de todo o processo que foi colocado ao mercado entre os meses de junho a outubro deste ano surge como alternativa mais sensata, criteriosa e estratégica. Isso permitiria que temas prioritários - como a definição metodológica da BRA - fossem aprofundados tecnicamente, sem o risco de decisões apressadas que comprometam a modicidade tarifária e a eficiência regulatória.

A revisão tarifária ordinária, sob as atuais incertezas, pode resultar na perda de uma janela histórica para a redução efetiva das tarifas. O fim dos contratos legados da Malha Sudeste e da Malha Nordeste, previsto para dezembro de 2025, representa uma oportunidade ímpar para corrigir importantes distorções. Atualmente, essas tarifas são excessivamente elevadas e pouco transparentes, reflexo de contratos tratados como ativos financeiros, e não como serviços públicos regulados.

Definição correta da BRA, evitando uma dupla remuneração

A venda das transportadoras NTS e TAG deu início a um processo de desverticalização e abertura do mercado de gás e deveria ter sido precedida de uma reavaliação, pela ANP, da Base Regulatória de Ativos – BRA e dos custos de O&M, o que não ocorreu.

Os contratos legados asseguraram uma remuneração integral (Capex + Opex) e não previam revisões periódicas. Na transição desses contratos para um modelo de custo do serviço, apenas ativos em operação (used & useful) e o valor residual não amortizado devem compor a BRA inicial (no double recovery).

Em março do corrente ano, a ANP, após inúmeros e recorrentes apelos dos agentes de mercado, finalmente deu publicidade às planilhas com as memórias de cálculo que levaram às tarifas dos contratos legados. Nessas planilhas, se identifica a depreciação não linear dos ativos, como também valores de Opex e Capex muito elevados (a partir de projeções e não de valores reais auditados) e alguns ativos não operacionais, dentre outros.

A proposta das transportadoras não considera a depreciação realizada nos ativos dos contratos legados das Malhas SE e NE (que alcança cerca de 98%). Tal proposta não pode ser aceita pela ANP, pois implicará numa duplicidade de remuneração, a ser paga, no final das contas, pelos usuários finais, o que fere os princípios da administração pública.

A escolha da metodologia para o cálculo da Base Regulatória de Ativos (BRA) será determinante para o valor da Receita Máxima Permitida (RMP). A ANP deve, por conta própria, conduzir estudos comparativos entre as metodologias do Custo de Reposição Novo (CRN) e do Custo Histórico Corrigido pela Inflação (CHCI). É crucial evitar a dupla remuneração dos ativos cujos contratos terminam em 2025, como também de todos os demais.

Surpreende também a tentativa das transportadoras de pleitear valores vultosos adicionais de opex e sustaining capex do período de 2017 a 2025, mesmo após já terem sido remuneradas via os contratos legados. A título de exemplo, apenas a NTS propõe cobrar R$ 1,7 bilhão que mereceriam maiores esclarecimentos da ANP, pois poderiam ser considerados parte dos compromissos dos contratos legados.

Se olhamos, por exemplo, para as projeções de gastos de O&M e PIG da NTS do período 2026 a 2030, uma simples análise de benchmark com países europeus e os EUA identificará custos duas a três vezes maiores, o que deveria ser objeto de uma auditoria por parte da ANP.

Sendo assim, a ANP deve tomar uma decisão tecnicamente embasada, amplamente discutida com o setor e orientada para o interesse público, garantindo eficiência, transparência, modicidade tarifária e empoderamento do consumidor.

Não se pode admitir que a ANP, diante de sua própria desorganização, conduza um processo apressado sob o pretexto de falta de tempo. A pressa não pode legitimar distorções históricas, prejudicar a competitividade do mercado ou comprometer o desenvolvimento sustentável do setor de gás natural no Brasil.

A ANP deve considerar o adiamento do processo, assegurando que seus efeitos, quando finalmente definidos, possam retroagir a 1º de janeiro de 2026, conforme prática comum no setor regulado.

O Brasil está diante de uma oportunidade única de reformular as tarifas de transporte de gás natural, corrigindo distorções históricas e promovendo um ambiente mais competitivo. Para isso, é preciso que a ANP exerça seu papel com coragem, isenção técnica e responsabilidade institucional, mesmo que isso signifique rever prazos e adotar soluções transitórias.

A análise das propostas tarifárias deve ser realizada com base em princípios de prudência, eficiência, transparência e modicidade tarifária.

O transporte de gás exige regulação séria, transparente e orientada ao interesse público e não à rentabilidade excessiva de poucos agentes, em detrimento da coletividade e da competitividade do país.

Outros Artigos